Envergando jeans, casaco em couro e cachecol cor de chumbo, Galvão Bueno caminhava por Milanello, o centro de treinamento do Milan. “Nós hoje vamos conversar com o número 80...”, adiantou. O “número 80” em causa era Ronaldo de Assis Moreira, o Gaúcho, personagem destacado naquela edição do programa Na Estrada com Galvão, exibido pelo canal pago Sportv.
Esqueçamos o princípio da conversa, quando o entrevistador indaga se Ronaldinho joga xadrez – resposta negativa. Esqueçamos quando este afirma não ser europeu e tampouco atravessar o samba. Esqueçamos, ainda e por fim, quando confessa que sempre sonhou ser famoso e que, criança, já treinava o próprio autógrafo. Mas não nos esqueçamos disto: Ronaldinho não parecia verdadeiramente interessado no diálogo, parecia alheio ao que se sucedia ao redor.
E é assim que sempre consegui percebê-lo, como um retrato do alheamento. Se em campo, no auge, era um sujeito concentrado, que sabia expressar vontades, fora da grama sugeria-se distraído. Era difícil vê-lo sozinho, tinha sempre um staff a rodeá-lo. A blindá-lo. Enxergávamos o Ronaldinho cercado por seguranças, por amigos, eventualmente por garotas sinuosas. E por Assis, seu irmão mais velho.
Ex-jogador de fama e sucesso relativos, Assis operava e opera como uma espécie tutor do caçula mais talentoso. Nada de estranho, portanto, no fato de ter sido convocado à roda do Na Estrada com Galvão. Questionado pelo apresentador, Assis mostrou-se sincero. Contou que se realiza “muito, muito, muito” em Ronaldinho. E então veio, agora sim, meu estranhamento.
Ao falar sobre o irmão, Assis usou “nós” e “a gente”. Talvez resquício de seus tempos de jogador. Talvez “vício” de linguagem. Ou talvez – e era a primeira vez que eu considerava tal possibilidade – indício de que a superproteção ao redor de Ronaldinho superava o habitual entre seus pares.
Meses adiante, no mesmo ano de 2009, Assis dava entrevista após um jogo festivo no Estádio Olímpico, do Grêmio. Tinha sido vaiado. “Como é que você vê o torcedor pegando no seu pé, Assis?”, indaga a repórter. “Faz parte, é tudo muito recente, a história da saída do Ronaldo (...). [O importante é que] A gente tem aí o reconhecimento do mundo, de um atleta que fez história lá fora (...). Quem sabe um dia a gente retorne ao Estádio Olímpico e que tudo volte ao normal...”
Conforme sabemos, a gente não retornou ao Estádio Olímpico. A gente preferiu o Flamengo, depois de sair do Milan. E a gente recebeu um bocado de críticas, por conta.
É bonita a relação de Assis e Ronaldinho. Apesar disso, nos tempos de decadência do segundo, eu não era capaz de escapar dum psicologismo vulgar: talvez Ronaldinho carecesse de alguma ruptura, ao menos parcial e restrita à atividade profissional, para voltar a ser o inigualável que foi em 2004 e 2005. Talvez fosse necessário mais independência, menos seguranças, menos carros com vidros escurecidos. Em minha divagação, a queda se devia à contaminação do Ronaldinho jogador pelo Ronaldinho que, na vida (por assim dizer) civil, não decidia nem fazia nada sozinho. Era ocasião de tomar controle de si.
E o que aconteceu, leitor, com Ronaldinho? Embora não tenha sido catastrófico em seus primeiros meses de Flamengo, os questionamentos surgiram. “Este aí só quer saber do futevôlei, churrasco, pagode e da noite carioca!”, acusaram uns. “Cadê o patrocínio milionário?!”, provocaram outros. Pois é. Dá-se, contudo, que nas últimas rodadas do campeonato nacional em curso Ronaldinho fez boa figura. Mereceu os holofotes pelos 5 x 4 que sua equipe aplicou na de Neymar. A que se deve a alteração de status?
Não sei assegurar se a independência aconteceu. Se “psicologicamente” a condição melhorou. Se Assis deixou de usar “a gente” e “nós”. Sei que, nos últimos dias, noticiou-se que o percentual de gordura de Ronaldinho Gaúcho é agora de 9%. Índice admirável, um tanto mais apropriado que o de suas últimas temporadas. Em boa forma física, o homem reencontra-se, aos poucos – no que têm ajudado as atuações ruins das defesas adversárias.
Não é raro que, em futebol (como noutros esportes), se atribua o fiasco exclusivamente a limitações que nada têm de técnicas. Vaidade, falta de ganas, preocupações demasiado financeiras ou capilares são algumas das “explicações” usuais. Incluo-me na fauna que, por vezes, cai na tentação de querer entender o que nem sempre é passível de compreensão. Existem motivações tangíveis e existem motivações imateriais. Erra quem julga que elas não se comunicam entre si.
“O coração tem razões que a própria razão desconhece”, disse o pensador francês Blaise Pascal (1623-1662), antecipando em três séculos o estilo de Ivan Lins. Pois o futebol tem razões que, nalguns casos, a própria razão conhece, digo eu. Modestamente, obviamente.
2 comentários:
A atuação de Ronaldinho foi algo que tirou 0,01% da raiva que foi o Santos 4x5 Flamengo. É legal vê-lo voltando a jogar.
Sobre o Assis, o que pensar? É difícil. Pelo menos ele assume que se realiza no irmão.
Eu acho que o Assis tenta ser o que não foi, ter o que o irmão tem, por isso é tão protetor, vamos dizer assim.
Fico impressionado com a felicidade de Assis quando dá entrevistas, quando é procurado, assediado. Talvez por ver seu irmão ser tão famoso, como ele mesmo não foi, ele tenta, a meu ver, "ser" o irmão.
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